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Na sequência da pandemia decorrente do novo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19 e das medidas de confinamento e isolamento social, as entidades empregadoras têm adotado medidas que visam prevenir o contágio entre os trabalhadores. Chegou ao conhecimento da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) que, de entre essas medidas, consta a recolha e o registo de dados relativos à saúde e de vida privada dos trabalhadores suscetíveis de indiciar infeção pelo vírus, designadamente, a temperatura corporal dos trabalhadores.

Como a recolha, bem como o registo, desta informação, porque relativa a pessoas singulares identificadas, corresponde a um tratamento de dados pessoais[ref]Nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento (UE) 2016/679, de 27 de abril de 2016 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – RGPD).[/ref], a CNPD vem, no exercício das suas atribuições e competências[ref]Cf. alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 57.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Regulamento (UE) 2016/679,de 27 de abril de 2016 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – RGPD) e artigos 3.º e 6.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto.[/ref], definir, de forma sucinta, orientações de modo a garantir a conformidade dos tratamentos de dados de saúde e da vida privada dos trabalhadores com o regime jurídico de proteção de dados.

Importa, em primeiro lugar, recordar que os dados pessoais relativos à saúde são dados sensíveis, reveladores de aspetos da vida privada do trabalhador que, em princípio, não têm que ser do conhecimento da entidade empregadora, nem devem sê-lo por poderem gerar ou potenciar discriminação. É por essa razão que esta categoria de dados está sujeita a um regime jurídico especialmente reforçado de proteção de dados[ref]Cf. n.º 1 e n.º 2 do artigo 9.º do RGPD. Para o efeito aqui só será pertinente o disposto na alínea b) e na alínea h) do n.º 2 do artigo 9.º do RGPD, em ambos os casos remetendo-se para legislação (nacional ou da União Europeia) que preveja esse tratamento e garantias adequadas dos direitos dos trabalhadores. Cf. ainda o n.º 1do artigo 28.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto[/ref], do qual decorre que a entidade empregadora não conhece, nem pode diretamente recolher ou registar, dados de saúde dos trabalhadores[ref]Na verdade, o tratamento deste tipo de dados no contexto laboral só pode ocorrer nos termos previstos em lei nacional, sendo certo que no ordenamento jurídico nacional só é permitida recolha de informação de saúde no contexto da medicina no trabalho[/ref].

É verdade que a situação excecional que se está a viver, enquadrada pelo estado de emergência decretado pelo Presidente da República e pelos diferentes diplomas legais entretanto publicados ao abrigo desse decreto, justificou alterações profundas no contexto da prestação do trabalho e da relação empregador–trabalhador. Todavia, a necessidade de prevenção de contágio pelo novo corona vírus não legitima, sem mais, a adoção de toda e qualquer medida por parte da entidade empregadora.

Com efeito, a prevenção de contaminação pode justificar a intensificação de cuidados de higiene dos trabalhadores (v.g., quanto à lavagem de mãos), bem como a adoção de medidas organizativas quanto à distribuição no espaço dos trabalhadores ou à sua proteção física, e algumas medidas de vigilância, conforme o estabelecido nas orientações da Direção Geral de Saúde[ref]Cf. Orientação 6/2020, de 26 de fevereiro[/ref]. Mas já não justifica a realização de atos que, nos termos da lei nacional, só as autoridades de saúde ou o próprio trabalhador, num processo de auto-monitorização, podem praticar. Na realidade, o legislador nacional não transferiu para as entidades empregadoras uma função que é exclusiva das autoridades de saúde, nem estas delegaram tal função nos empregadores.

Assim, não pode uma entidade empregadora proceder à recolha e registo da temperatura corporal dos trabalhadores ou de outra informação relativa à saúde ou a eventuais comportamentos de risco dos seus trabalhadores.

Porém, mantém-se obviamente a possibilidade de o profissional de saúde no âmbito da medicina do trabalho avaliar o estado de saúde dos trabalhadores e obter as informações que se revelem necessárias para avaliar a aptidão para o trabalho, nos termos gerais definidos na lei da segurança e saúde no trabalho[ref] Aprovado pela Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, alterada por último pela Lei n.º 79/2019, de 2 de setembro.[/ref]. De acordo com os critérios científicos que presidem às suas decisões clínicas e com as orientações da autoridade nacional de saúde, cabe-lhe determinar a frequência e tipo de avaliação que considere conveniente para este efeito e, sempre que identifique trabalhadores com sintomas ou em outra situação que o justifique, adotar os procedimentos adequados a salvaguardar a saúde dos próprios e de terceiros. Em especial, no período de progressivo termo do confinamento e de regresso à laboração, a eventual recolha, através de preenchimento de questionários pelo trabalhador, de informação relativa à saúde ou à vida privada do mesmo relacionada com a sua saúde (v.g., se esteve em contacto com pessoas contaminadas) só está legitimada se for realizada direta e exclusivamente pelo profissional de medicina no trabalho, tendo em vista a adoção dos procedimentos adequados a salvaguardar a saúde dos próprios e de terceiros

A CNPD recorda que as entidades empregadoras se devem limitar a atuar de acordo com as orientações da autoridade nacional de saúde para a prevenção de contágio pelo novo corona vírus no contexto laboral, em particular as dirigidas às entidades empregadoras em certos setores de atividade, abstendo-se de adotar iniciativas que impliquem a recolha de dados pessoais de saúde dos seus trabalhadores quando as mesmas não tenham base legal, nem tenham sido ordenadas pelas autoridades administrativas competentes.

Lisboa, 23 de abril de 2020