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Em face das notícias divulgadas pela comunicação social de que, na retoma das aulas presenciais, na atual situação de pandemia provocada pelo novo coronavírus SARSCoV-2 e pela doença Covid-19, alguns estabelecimentos de ensino adotaram o procedimento de leitura da temperatura corporal dos alunos, entende a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) ser oportuno recordar que a leitura de temperatura corporal de alunos, independentemente de se realizar ou não o respetivo registo, constitui um tratamento de dados pessoais[ref]Cf. artigo 4.º, alíneas 1) e 2), do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2020 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, doravante RGPD)[/ref].
Na verdade, a temperatura corporal é informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável, e sobre ela está a ser realizada uma operação de recolha e análise, tanto que, em função do resultado da medição observado, é tomada uma decisão que afeta a vida do aluno titular dos dados: se é ou não admitida a sua entrada no estabelecimento de ensino que frequenta e, portanto, se é impedido de assistir e participar nas aulas presenciais.
Assim, a CNPD, no exercício das suas atribuições e competências[ref]Cf. alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 57.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do RGPD e artigos 3.º e 6.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto[/ref], vem sensibilizar os estabelecimentos de ensino para a obrigação de verificarem e demonstrarem que os tratamentos que realizam cumprem os princípios e as regras legais de proteção dos dados pessoais[ref]Nos termos previstos no n.º 2 do artigo 5.º do RGPD[/ref].
Com efeito, enquanto responsáveis pelos tratamentos, recai sobre os estabelecimentos de ensino a obrigação de verificar e demonstrar que a sujeição dos alunos ao procedimento de leitura corporal antes da entrada nas respetivas instalações assenta num fundamento de licitude[ref]Previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no n.º 2 do artigo 9.º do RGPD.[/ref] e respeita os princípios de proteção de dados pessoais[ref]Consagrados no n.º 1 do artigo 5.º do RGPD.[/ref].
Nesses termos, importa esclarecer que não basta o interesse legítimo do responsável ou de terceiro em prevenir o contágio da doença Covid-19 para se ter como lícito o tratamento[ref]Fundamento previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º do RGPD. Tão-pouco, no caso de estabelecimentos de ensino públicos, basta a invocação de que o tratamento é necessário ao exercício de funções de interesse público, a que se refere a alínea e) do n.º 1 do mesmo artigo[/ref]. Não apenas porque o RGPD faz depender a consideração deste pressuposto de uma avaliação da não prevalência dos direitos e interesses dos titulares de dados, em especial quando estes sejam crianças, mas também porque em causa está um dado relativo à saúde, cujo tratamento está por regra proibido[ref]Cf. n.º 1 do artigo 9.º do RGPD[/ref].
Como tal a licitude do tratamento depende ainda de se verificar uma das condições do n.º 2 e, porventura, do n.º 3, do artigo 9.º do RGPD.
A este propósito destaca-se que o diploma legal que regula a retoma das atividades letivas presenciais não prevê este tratamento de dados pessoais. Na verdade, o Decreto-Lei n.º 20-H/2020, de 14 de maio, adita ao Decreto-Lei n.º 14-G/2020, de 13 de abril, o artigo 3.º-A, no qual se determina apenas que os estabelecimentos de ensino reorganizem «os espaços, turmas e horários escolares, de forma a garantir o cumprimento das orientações da Direção-Geral da Saúde, nomeadamente em matéria de higienização e distanciamento físico». Nem as orientações e recomendações da Direção-Geral da Saúde, para o qual o mesmo remete, apontam para esta medida como adequada e necessária à salvaguarda da saúde pública[ref]Cf. Orientação n.º 24/2020, de 8 de maio, sobre Regresso ao Regime Presencial dos 11.º e 12.º Anos de Escolaridade e dos 2.º e 3.º Anos dos Cursos de Dupla Certificação do Ensino Secundário, disponível em https://covid19.min-saude.pt/orientacoes/[/ref]. Na verdade, quanto ao acesso ao recinto escolar, nas orientações somente se especifica o «dever de garantir que todos estão a utilizar máscara. Deve ainda ser acautelada a higienização das mãos à entrada e à saída, com solução antisséptica de base alcoólica (SABA)».
Como em outros contextos, a Direção-Geral da Saúde sublinha a importância da automonitorização dos sintomas da doença e, portanto, determina que «os alunos, bem como o pessoal docente e não docente com sinais ou sintomas sugestivos de COVID19, não devem apresentar-se na escola»
Naturalmente, como em relação a outros tipos de organizações, recomenda que se atue em conformidade com o Plano de Contingência interno e se adotem os procedimentos adequados perante a identificação de um caso suspeito de COVID-19, que foram já objeto de orientações pela mesma entidade, nas quais não se especifica a imposição de procedimento de medição da temperatura corporal antes de entrar nas instalações do responsável pelo tratamento[ref]Cf. Orientação n.º 6/2020, de 26 de fevereiro, acessível em https://www.dgs.pt/directrizes-dadgs/orientacoes-e-circulares-informativas/orientacao-n-0062020-de-26022020-pdf.aspx[/ref].
Paralelamente, o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 20-H/2020, de 14 de maio, nada prevê quanto a tal procedimento no âmbito da retoma das atividades presenciais nos estabelecimentos de ensino superior, limitando-se a remeter para os planos de levantamento das medidas de contenção aprovadas pelas instituições de ensino superior e para as orientações da Direção-Geral de Saúde.
É certo que os estabelecimentos de ensino, nos diferentes níveis de ensino, dispõem de autonomia regulamentar, no âmbito da qual pode ser definido o estatuto do aluno.
Porém, a restrição a direitos, liberdades e garantias, como seja o direito ao respeito pela vida privada e o direito à proteção dos dados pessoais, só pode ocorrer por determinação de lei, que preveja medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos fundamentais e os interesses dos titulares dos dados, não podendo, por isso, em caso algum um regulamento de um estabelecimento de ensino introduzir inovatoriamente uma restrição daqueles direitos[ref]Cf. n.º 2 do artigo 18.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, bem como as alíneas g) e i) do n.º 2 do artigo 9.º do RGPD. Repare-se que nem a Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro, nem o Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril, na sua redação atual, preveem qualquer restrição ao direito ao respeito da vida privada em matéria de saúde. Aliás, a Lei n.º 51/2012, que aprova o estatuto do aluno, consagra apenas um direito à assistência em caso de acidente ou doença súbita. O mesmo sucede com a Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, que remete para a autonomia regulamentar das instituições de ensino a definição dos direitos e deveres dos alunos, não prevendo aí qualquer restrição dos direitos, liberdades e garantias relativas à vida privada em matéria de saúde dos mesmos[/ref].
Ainda a propósito dos fundamentos de licitude para o tratamento de dados de saúde, importa destacar que o consentimento, para ser juridicamente relevante, tem de ser dado em condições que garantam a liberdade inerente a essa manifestação[ref]Cf. alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º e alínea 11) do artigo 4.º do RGPD[/ref]. O que pressupõe, não apenas informação clara sobre as condições do tratamento de dados pessoais e sobre as consequências do mesmo, mas também que essa manifestação de vontade explícita não esteja condicionada ou prejudicada pelas eventuais repercussões (ou pela ameaça de repercussões) que a recusa da sua emissão possa ter – como estabelece o RGPD, só se considera consentimento do titular dos dados «uma manifestação de vontade livre, específica, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita […] que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de tratamento»[ref]Alínea 11) do artigo 4.º do RGPD. Vide ainda o considerando 43 do RGPD, onde se lê «[…] em casos
específicos em que exista um desequilíbrio manifesto entre o titular dos dados e o responsável pelo seu tratamento, o consentimento não deve ser tido como fundamento válido de licitude deste».[/ref]. Significa isto que a declaração de vontade eventualmente manifestada pelo aluno, ou pelo encarregado de educação, só é relevante para fundamentar o tratamento se não houver ameaça ou comunicação de que a recusa de sujeição ao procedimento de leitura da temperatura corporal implica a consequência negativa para o aluno de ser impedido de entrar numa sala de aula e, portanto, de obter os ensinamentos necessários à sua preparação para a avaliação.
Finalmente, mesmo que os estabelecimentos de ensino concluam pela verificação em concreto de um fundamento de licitude, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 9.º do RGPD, compete-lhes ainda verificar e demonstrar que os princípios de proteção de dados consagrados no n.º 2 do artigo 5.º do RGPD são em concreto respeitados. Em especial, carece de demonstração a adequação e a necessidade do referido tratamento de dados pessoais de saúde dos alunos, mais a mais tendo em conta a elevada percentagem de casos assintomáticos de infetados pelo coronavírus SARS-CoV-2 e na percentagem de doentes com Covid-19 sem febre (de acordo com os dados da DireçãoGeral de Saúde, cerca de dois terços), para não falar dos demais casos de febre provocados por outras causas que, já antes desta pandemia, ocorriam e continuam a ocorrer. Reitera-se que o referido tratamento não foi recomendado aos estabelecimentos de ensino pela autoridade nacional de saúde, entidade a quem, pelas suas competências técnicas e científicas, a lei atribui a competência para determinar ou recomendar as medidas adequadas e necessárias à garantia da saúde pública.
Lisboa, 19 de maio de 2020